Filme revisita memórias de menina em João Monlevade (MG)

Aos 51 anos de idade, Alexsandra Mara Felipe Fernandes decidiu reencontrar o passado para se reconciliar com a sua própria história. A mulher de olhos doces e sorriso tímido encarou as correntezas da vida para superar o preconceito e o racismo vividos na infância. A gestora de projetos sociais, moradora de João Monlevade (MG), transformará suas lembranças no filme “Me Disseram que Sou Negra” através do Curta Vitória a Minas III. As gravações começaram na sexta-feira (05/07) e terminaram na segunda-feira (08/07) na cidade.

Alexsandra é afetuosa e brincalhona. Sua beleza, inteligência, bondade e sensibilidade ocupam delicadamente o espaço onde toca e guardam uma grande força de transformação e mobilização. Mas a filha da dona de casa Lourdes Saturnino Felipe e do torneiro mecânico e fresador José Basílio Felipe foi uma criança tímida e calada. O ambiente escolar acentuou uma personalidade contida porque não lhe pareceu um lugar seguro para se abrir e conviver com as pessoas naquele momento da vida.

“Pelo que me lembro, o racismo na escola começou aos 9 anos. Meu cabelo era loirinho, era bronze, e eu achava bonito, mas começaram a me insultar. Eu pensei: como vou mudar a cor do meu cabelo? Não tinha aquela facilidade de hoje para se pintar, ainda mais o cabelo de uma criança. Mãe começou a fazer trança. No início, fiquei aliviada porque o penteado escondia um pouco a cor. Eram umas tranças bonitas muito elogiadas. Eu ficava feliz. Mas aí mãe começou a fazer umas tranças esquisitas”, recorda Alexsandra.

Ela conta que as pessoas faziam comentários indelicados, agressivos, deixando-a envergonhada e com medo de interagir com os outros. Na sala de aula mantinha a cabeça baixa, temia chamar a atenção na hora de responder à chamada e desaparecia no recreio, principalmente, se estivesse sozinha. A melhor amiga na escola sempre era aquela que também se escondia pelos cantos.

“Eu sofri demais na escola durante a infância. Quando fiquei adolescente, era a mesma coisa. Eu estava cansada daquilo. Era horrível e me prejudicou muito. Mas os colegas se divertiam. No outro dia, eu pensava, lá vou eu de novo pra escola. Tinha ainda a minha timidez, juntava tudo. Desde que me lembro, eu era tímida, mas acho que fui piorando na convivência com as pessoas. Acho que pensavam: “esta menina aí não vai revidar, vamos mexer com ela”. Naquela época, bullying era tratado como a coisa mais normal do mundo. Eu não enfrentava, abaixava a cabeça, ficava imóvel, não falava nada”, relembra.

A luta pra se manter na escola

Certa vez, e apenas uma vez, ainda criança, ela comentou com a mãe o que estava acontecendo e pediu-lhe para não colocar a trança. Sua mãe a acolhia, lhe dava força e a ensinava a construir a autoestima, mostrando-lhe como ela, seu cabelo e suas tranças eram lindos, no entanto, a menina não acreditava e pedia a mãe que escondesse o seu cabelo e a tornasse invisível. Os ataques racistas cometidos pelos colegas dentro da escola lhe trouxeram dificuldades para estudar e aprender, levando-a a repetir algumas séries do ensino fundamental. Apesar das violências, ela manteve-se na escola e amava as aulas de redação, onde exercitava o dom de criar e escrever histórias.

Aos 13 anos começou a escrever em diários enfeitados com desenhos e figurinhas, mas os perdeu numa grande enchente. Foi preciso abandonar a sala de aula porque engravidou do primeiro filho, aos 22 anos de idade. Anos mais tarde, formou uma família ao lado de Edson Renato da Silva Fernandes e tem dois filhos, Matheus Felipe Santos, 28 anos, e Ana Vitória Felipe Fernandes, 20 anos. Aos 40 anos, concluiu o ensino médio e começou a cursar uma faculdade através da educação à distância. Foi preciso interromper o curso porque a Lan House onde estudava fechou e, como não tinha computador em casa, não teve mais acesso às aulas online. Alexsandra ainda sonha em fazer um curso superior.

A transformação

No decorrer do tempo, o amadurecimento, o autoconhecimento, a experiência com a espiritualidade, a troca de vivências e reflexões lhe ajudaram, aos poucos, a abandonar as cascas que a aprisionavam no passado e a impediam de ser quem quisesse ser com liberdade, admiração, respeito e confiança. Sua personalidade combativa e questionadora transbordou para fora de si e ela se tornou uma liderança vibrante na luta antirracial e no combate às múltiplas violências enfrentadas, principalmente, pelas crianças e mulheres negras. Hoje, ela preside a Associação Monlevadense de Afrodescendentes (Amad).

“Me Disseram que Sou Negra”, baseado em suas memórias, traz um olhar para o passado, não como aprisionamento, mas como fortalecimento e reconhecimento, como um caminho para compreender melhor as relações e os acontecimentos. “Eu gostaria muito que o filme pudesse ser visto pelas crianças que passam por esta situação, pelas mães que têm filhas passando por isso, para inspirá-las a cuidar de suas filhas, porque o racismo causa um estrago enorme na vida da gente. Eu perdi muita oportunidade por causa disto, porque sempre me retraí diante destas agressões. Foi muito sofrimento e, se o filme puder chegar ao máximo de crianças, para que não passem por isso, eu já vou estar muito feliz. Acho que o objetivo é mostrar esta dor de uma criança que está lá pedindo socorro e não tem quem a socorra”, destaca a diretora.

A produção

Para gravar a ficção inspirada em suas memórias, a diretora revisitou a casa, o quintal da família e os arredores da comunidade onde cresceu no bairro Santa Cruz. O elenco é composto por três atrizes que a interpretam em três diferentes fases da vida. Giovanna Danielle dos Santos Gonçalves, Ana Alice Sérgio Rosa e Bárbara Cristina da Silva Vicente viverão a protagonista, respectivamente, aos 9, 13 e 16 anos. A mãe da diretora será vivida pela amiga Letícia Aparecida da Silva.

“Quando recebi a notícia, fiquei muito surpresa, muito alegre. Nunca atuei, é a primeira vez, mas estou amando. Pra mim fazer a cena é muito legal. Eu amo! O que eu tenho mais dificuldade é na hora de falar. A história fala de uma menina negra que ao longo do tempo foi crescendo e sofria demais por causa do cabelo e da pele. A história é muito emocionante”, conta Giovanna Danielle, de 7 anos, estudante do 2º ano do Ensino Fundamental. Na fase seguinte, a protagonista é interpretada por Ana Alice Sérgio Rosa, 10 anos, estudante do 5º ano do Ensino Fundamental. “Eu recebi este convite da Alexsandra, uma mulher muito boa, e achei muito legal representá-la no filme. Não tinha atuado antes e gostei muito”, conta Ana Alice.

A estudante de Artes Visuais Bárbara Vicente, 26 anos, é vice-presidente da Amad, onde Alexsandra atua como presidente. Criada em 2017, a entidade oferece apoio e atendimento jurídico, terapêutico e psicossocial e desenvolve diferentes atividades artísticas e educativas de empoderamento e fortalecimento da comunidade negra. “Nós duas atuamos juntas nesta associação, fazemos intervenções artísticas e encenações poéticas, então, ela me chamou para o papel. Eu fiquei muito animada porque pra mim é uma coisa nova fazer cinema. Antes, eu havia atuado no teatro, mas é diferente. Fui ver a diferença agora e estou apaixonada”, descreve Bárbara. De acordo com ela, no teatro, o artista trabalha os gestos mais expansivos e exagerados e, no cinema, a atuação ocupa o espaço criativo da microexpressão. A estudante amou a experiência, não encontrou  dificuldades para atuar e destacou o bom trabalho da equipe técnica do set de filmagem.

Para Bárbara, a temática da história vivida pela amiga toca todas as mulheres negras. “A história da Alê conta sobre ela mesma se descobrindo negra, passando por várias situações racistas na infância, não se gostando, não se amando, uma situação que nós, negras, enfrentamos muito. Eu passei por isso na infância. A história é linda, de reconhecimento, de reconhecer que você realmente é preta. E é bem forte também. Não existe uma mulher negra que não tenha passado por isso, não tem uma mulher negra que não sabe o que é olhar para o espelho e não gostar do que está vendo. E a gente descobrir isso e passar a gostar depois é libertador”, relata Bárbara Vicente.

Quem dá vida na ficção à Dona Lourdes, mãe de Alexsandra, é a Letícia Aparecida, 36 anos, que trabalha como secretária numa capotaria. As duas se conheceram durante uma viagem de carro quando Letícia trabalhava como motorista particular. As viagens se multiplicaram e a amizade se consolidou. Letícia amou o convite e se encantou com a vivência num set de filmagem. “Eu nunca tinha atuado antes, na verdade, não tinha nem sequer uma noção nem de gravação, nem de tempo, nunca fiz nem teatro na minha vida. O que eu achei mais legal é que a gente acaba se familiarizando tanto com a história, com a vida, com o pessoal todo da gravação, e quando termina, dá até um aperto no coração, no peito, porque a gente se acostuma com todo mundo”, relata. Para a secretária, uma das tarefas mais difíceis foi decorar o texto, por causa da ansiedade, da insegurança e da falta de experiência com encenação. Por várias vezes, ela também se enxergou nas memórias da amiga.

“A história dela fala sobre as pessoas negras que sofreram muito. Ainda existem pessoas que sofrem preconceito. Nesta época era bem difícil, quem tinha o cabelo super afro, super crespo, sofria bullying e racismo na escola. E é muito legal ver a aceitação nesta história dela. Eu acredito que foi bem difícil. A gente vive esta experiência. Você se vê ali porque passou por isso, não da mesma maneira, não com a mesma intensidade, mas se vê na cena. É muito interessante. Foi pra mim um prazer enorme participar do filme”, destaca Letícia.

A conexão de histórias

Durante as filmagens, a diretora contou na equipe técnica com a participação de outro diretor do projeto, selecionado na segunda edição com a história “O T-Rex e a Pedra Lascada”, Luã Ériclis, morador de João Neiva (ES). O biólogo e educador ambiental assumiu a função de assistente de direção e se somou aos esforços sobre como tratar o tema a partir dos recursos criativos da linguagem e da arte cinematográfica. Acolhido na casa da diretora por ela e por sua família, Luã se juntou à Alexsandra para descobrirem juntos como a ferramenta audiovisual pode iluminar as narrativas e as vivências da história que se pretende contar.

“Existe uma palavra da filosofia africana chamada Ubuntu – “só sou porque nós somos” – então, a minha presença dentro do set e dentro da casa da diretora comprova um pouco como fomos atravessados por esta filosofia. O filme dela trata de temáticas, de vivências negras pelas quais eu passei, a minha mãe passou, as minhas irmãs passaram, cujas camadas serão identificadas pelas pessoas negras. Isso nos ajudou a construir este imaginário e a trazer as memórias da protagonista para a tela numa perspectiva de parceria, como se a gente já se conhecesse e pertencesse a uma só família ancestral”, conta Luã.

O processo de construção do filme desde o resgate das memórias, a escrita da história, a construção contínua do roteiro, o aprendizado básico sobre a linguagem e as técnicas do cinema, a seleção e a preparação do elenco formado por mulheres, a organização da casa e do quintal, do figurino, dos objetos de cena, o envolvimento dos membros da família, em especial, da mãe e do pai, tudo isso ainda parece um sonho para a diretora. Ela ressalta o apoio, o acolhimento e o carinho dos profissionais, a dedicação das meninas do elenco e a participação da família e dos amigos nesta missão de contar uma história.

“É muito lindo proporcionar isso pra minha mãe e para o meu pai. É muito gratificante, estou muito orgulhosa e um pouco apreensiva também. Me emocionei algumas vezes porque revivi a história. Fazer um filme é uma experiência incrível. Agora vou rever todas as imagens gravadas, vou viver o momento da edição e em seguida a grande exibição do filme no cinema. É um ano de experiências lindas. Depois vem a emoção de me inscrever em festivais, de colocar este filme para circular o país. É muito emocionante”, descreve Alexsandra Mara.

Texto: Simony Leite Siqueira

Fotos: Equipe IMA

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