Filme resgata um rio de histórias em Conselheiro Pena (MG)

Houve um tempo em noite de lua cheia das famílias se reunirem debaixo do céu estrelado e em volta do fogão a lenha no quintal de casa para ouvir as histórias trazidas da mata e do rio. O real e o imaginário se misturavam num emaranhado assombrado, encantador e fantástico. A contação de histórias transmitidas de geração em geração inspirou o filme “Um Rio de Histórias”, da diretora Márcia Cristina Cândido, selecionada pelo Curta Vitória a Minas III. As gravações do curta-metragem aconteceram de 30 de julho a 02 de agosto em Conselheiro Pena (MG).

Professora da educação infantil e do ensino fundamental, Márcia sempre vibrou como a menina que se apaixonou pelas histórias. Sua mãe Marli Cardoso Cândido lhe contava os causos ouvidos do pai dela, Geraldo Cardoso, um conhecido e respeitado mecânico de carros pesados na cidade, nascido num tempo em que o lugar ainda se chamava Lajão por causa da grande laje de pedra às margens do Rio Doce. Vô Geraldo também gostava de caçar e de pescar e costumava reunir a esposa Delvina Gomes Cardoso, a Vó Delva, e os 8 filhos biológicos e 05 adotivos para contar os causos colhidos nas aventuras. Eram contos do cotidiano dos antepassados como o da menina que virou onça e passou a assustar os pescadores e caçadores da região.

“Meu avô criou os filhos e os agregados que foram chegando vindos de famílias que não tinham condições de criar os filhos, mas, na época, como ele tinha uma condição boa, foi juntando as pessoas. A casa era pequena e existe ainda, teve algumas reformas e, hoje em dia, a gente se pergunta como tantas pessoas viveram nesta casa. Era um lar de acolhimento. Como esse povo ficava ali tudo junto, veio esta história do meu avô caçador e pescador. Cada dia que voltava da pesca e da caça, contava uma história diferente”, relata a professora. Segundo ela, algumas histórias eram inventadas, outras até aconteciam mesmo numa época com poucas casas no lugar.

Marli aprendeu a ler, a escrever e guardou muitas histórias num caderninho que se perdeu. Sua vida também continuou costurando novas histórias. Ela cresceu, avançou nos estudos e começou o curso técnico de enfermagem. Ao decidir se casar, desistiu da escola. Anos mais tarde, o gesto de contar histórias aprendido com o pai Geraldo ajudou Marli acalentar a filha Márcia e amenizar a tristeza e a solidão. Quando se separou, Marli precisou lavar roupa e trabalhar como doméstica para sustentar a filha e o filho mais novo, o Jussie. Após a mãe se esforçar para matriculá-la numa escola particular, Márcia conseguiu uma bolsa integral para cursar da quinta à oitava série como recompensa pelas notas altas.

“A mãezinha sempre foi guerreira, muito batalhadora, e ela foi muito nômade, andando atrás do meu pai que ficava de emprego em emprego. Eu e ela ficamos muito sozinhas. Foi por isso que ela me acalentava com as histórias do meu avô. A gente era muito unida nisto e era só nós duas. Depois éramos eu, ela e o meu irmão mais novo. Minha mãe é uma mulher diferenciada que, depois de uma certa idade, depois da separação, teve que trabalhar e, praticamente, criou a mim e o meu irmão, sozinha. É uma mãe muito forte”, ressalta a filha.

Márcia sempre amou estudar, ler e escrever. A gravidez no ensino médio levou a adolescente a cursar o magistério para sustentar a filha Mariana e ajudar a mãe e o irmão nas despesas de casa. Vó Delva ajudava a ficar com a bisneta para neta completar os estudos. Após a batalha para enfrentar os primeiros desafios de lecionar, a jovem mãe ingressou no Normal Superior, como era conhecida a atual faculdade de Pedagogia, e com o tempo, esforço e perseverança, vieram as duas especializações, “Mídias, Alfabetização e Letramento” e “Gestão, Supervisão e Orientação”.

Apesar do sonho com a carreira militar, Márcia abraçou a sala de aula. A professora se encantou com a alfabetização e com o poder da educação de transformar vidas e de fortalecer as pessoas no enfrentamento das questões sociais provocadas pelas múltiplas violências. E foi assim que a contação de histórias entrou mais uma vez na trajetória de Márcia. Todos os dias, no início da aula, ela conta uma história para a turma de crianças. O conto pode ser inventado, lido ou até inspirado em situações enfrentadas pelos estudantes no dia anterior ou naquela semana. A brincadeira se chama “Leitura Deleite”.

“Esta história contada no começo da aula para o aluno vem dar um afago nele, pra ele saber que estou ali, que sou amiga, mas também sou exigente. Ser professora é encantar, despertar o outro e, através da leitura, mostrar que existem outros mundos. Acho que o fundamental do ser professora é abrir portas que estão fechadas para eles. É mostrar que tem um mundo além. Quando vejo que tem uma turma muito resistente, eu mostro que a minha vida foi assim, assim, assim e que depois de começar a trabalhar, pude dar dignidade para a minha família”, relata a professora.

Da história para o filme

Ao conquistar a chance de transformar uma história em filme, através do Curta Vitória a Minas III, a professora se despertou para a necessidade de resgatar, registrar e compartilhar as histórias contadas pela família. A oportunidade de aprender sobre a linguagem e as técnicas audiovisuais a motivou a levar o que aprendeu sobre o cinema para a escola. A ideia é utilizar o audiovisual como ferramenta para contar mais e mais histórias.

“Fazer este filme pra mim é mudar a vida, me deu um olhar mais amplo da vida. Nem filme eu consigo assistir mais da mesma forma. Você sabe que tem um plano assim, que pode ser assim, que tem uma intenção ali. Este filme é um divisor de águas. Estou melhor comigo mesma, sei que posso fazer uma obra, posso pegar o que aprendi e aplicar na escola, posso trabalhar o cinema com as pessoas porque estou com uma bagagem enorme. Posso trabalhar este conhecimento com os meus alunos, com os meus colegas de trabalho, porque, se me melhorou, eu vou melhorar o entorno”, declara a professora.

A diretora quer estimular a contação de histórias dentro da escola e das famílias. Segundo ela, no cotidiano da escola, ao enviar uma tarefa para casa, o objetivo não é apenas fazer com que o aluno exercite e aprofunde um conhecimento, mas, também provocar um tempo maior entre pais e filhos porque, além de acompanhá-lo na resolução do dever, o responsável irá perguntar como foi o dia da criança, como está a relação com os colegas e como está se sentindo naquele dia. “Os pais e os filhos precisam deste momento diário juntos. Mas não existe. Setenta por cento não faz este exercício. Mas eu tento provocar isso. Com a história, com o filme, com o curta, vou tentar estimular este aconchego da contação de histórias, de falar sobre a sua família, a sua infância pra seu filho, para que ele possa entender que ele é importante, que está construindo uma história”, planeja Márcia.  

Novas vivências

A professora Roseli Soares Trindade atua na educação infantil e no ensino fundamental em Conselheiro Pena. Como está sempre ao lado da professora Márcia nas atividades de teatro da escola com objetivo de estimular habilidades e entreter os alunos, ela assumiu o papel da mãe da menina-onça no filme.  Para a educadora, o convite trouxe a alegria e o desafio de participar de uma aventura nova: atuar para as câmeras operadas por profissionais do cinema e da TV. Uma das maiores dificuldades para a professora cujo temperamento é naturalmente alegre foi expressar a tristeza da personagem. Mas, ela acabou se divertindo com o processo.

Acostumada apenas a ver os filmes na televisão, a Roseli não imaginava como se gravava uma obra audiovisual. “Se exige muito de quem está atuando e de quem está filmando. É bem desgastante, cada cena é gravada diversas vezes, sob vários ângulos, é um pouco cansativo, mas foi muito bom. Agora até que entendo porque um ator profissional fala que teve que gravar até de madrugada”, brinca a educadora.

A oportunidade de conhecer pessoas novas e de se aproximar de moradores da cidade com quem nunca se relacionou antes tornou a vivência ainda mais enriquecedora para a professora. Ela gostou muito de contribuir com a missão de transformar em filme uma história antiga, comovente, que mistura folclore e realidade, no entanto, muito sintonizada com os desafios dos dias atuais. “Gosto muito de ler, de ouvir e de contar história. É uma forma de transmitir valores universais, se inteirar de culturas diferentes e, ao mesmo tempo, desperta o senso de justiça e cultiva a empatia. A história é como ponte que conecta o mundo real ao mundo da imaginação”, destaca Roseli.

A professora Nilva Paula de Souza, 49 anos, diretora da Escola Municipal Francisco Cândido e Silva, fechava os olhos para ouvir as histórias contadas por sua mãe biológica e por sua mãe adotiva antes de dormir na infância. Hoje, ela é contadora de histórias e utiliza o teatro para despertar a criatividade e a imaginação das crianças e para ajudá-las a fixarem melhor o aprendizado das matérias escolares. Nilva sentiu-se honrada de interpretar na ficção Dona Marli, mãe da Márcia.

“Quando recebi o roteiro, fiquei feliz demais porque iria representar uma pessoa de muita importância, uma guerreira. Isso me deixou muito orgulhosa. Peguei o roteiro para me preparar e ficava imaginando neste filme, me imaginei sendo a Dona Marli, vivendo aquele momento tão impactante na história”, conta a professora e diretora. Em sua primeira vez no cinema, ela também não imaginava o quanto é trabalhoso gravar uma cena e o quanto este esforço contribui para o filme prender a atenção e emocionar o espectador.

Para viver o pescador Geraldo, o ator Diogo de Carmo, 28 anos, estudou o roteiro e conversou com tios e primos que praticam a pescaria para observar como costumam gesticular e falar. Embora mais habituado à atuação no teatro, esta é sua terceira vivência dentro de um set de filmagem. Atuou no curta “Além de dois”, de Fabio Geraldo, e no longa “Conexão Explosiva”, de Fabrício Santos. Atualmente, é um dos atores da peça “Família Pão com Ovo”, em Belo Horizonte (MG).

“Atuar é a minha área de conforto, gosto muito de fazer e me divirto fazendo. Foi ainda maior a alegria de atuar na minha cidade. Eu achei a história maravilhosa, tem lendas, tem uma pegada meio suspense, meio terror, aventura, drama, é uma história muito legal. Amo ouvir histórias. Hoje, ouvir e contar histórias é o que faz as coisas acontecerem. O entretenimento não existiria se não fossem as histórias”, avalia Diogo.

O professor e educador físico Rodrigo Ribeiro Leandro, 38 anos, interpreta um fazendeiro diante de uma decisão macabra. Para aproveitar os momentos no set de filmagem, ele se empenhou em melhorar a atuação a cada novo take. “Cada cena que cortava, que voltava, eu queria fazer o melhor. Eu pensava assim: quem estaria assistindo aquele pedacinho? Não importava quanto tempo eu teria no filme, eu estava dando o melhor pra aquelas pessoas que iriam me assistir. Fiquei maravilhado por fazer parte do elenco”, descreve o educador.

O pintor da construção civil Ricelli Cardoso Pereira, 34 anos, topou interpretar o caçador do conto. “Foi uma experiência nova. Eu não tinha feito nada. Só dancei quadrilha na escola, mas tem muito tempo isso. Eles falaram que eu tinha que ser sério, fixar o olho mais na mata. Eu nunca tinha participado e nunca imaginava participar de uma filmagem. Eu gostei muito, foi legal. Deu um friozinho na barriga na hora que a câmera fixou em mim. Nunca tinha acontecido isto, mas eu gostei muito”, destaca o pintor, primo da diretora.

“Um Rio de Histórias” ganhou uma canção original composta de modo especial para obra pelo maestro, professor de canto e coral, piano e cordas da Corporação Musical Conselheirense (CMC) Adão José dos Santos. “Cinzas de Saudades” tem como inspiração a nostalgia deixada pelo passado da contação de histórias em volta da fogueira nos quintais. A obra é interpretada por Adão, no violão (1); Antônio Cláudio Machado Silva, no violão (2); e Rodolfo Santiago, na percussão.

“A composição musical do filme traz pra gente uma felicidade que não se tem mais, por mais que a vida melhore, a simplicidade daquele tempo não volta. As nossas melhores memórias estão numa conversa, num cheiro de comida simples servida no prato de esmalte, no gesto de colocar a batata doce no fogão de lenha e esperar assar pra comer, no cheirinho de chuva. São estas memórias que dão força pra gente continuar”, relata Márcia.

Celebrando memórias

Rubia Quetane Fernandes Cardoso, 28 anos, atua no atendimento ao cliente em supermercados. Prima de Márcia, sobrinha de Marli, neta de Geraldo, a mineira de Conselheiro Pena assumiu o papel da menina-onça, uma das protagonistas do curta-metragem. Rubia não conhecia o causo contado pelo avô, mas a experiência de gravar este conto acionou lembranças da infância vividas na casa aonde cresceu criada pelas tias e pela avó Delva.

“Antigamente, não tinha chuveiro quente, tinha que esquentar água pra tomar banho, num fogão no chão. A avó falava: “vai tomar banho”. Eu e meus primos colocávamos a panela pra esquentar a água, depois, sentávamos pra ouvir as histórias contadas pela minha avó e pelas tias. A gente ficava ali escutando como era o passado, sobre as coisas que aconteciam”, lembra Rubia sobre uma época em que ainda havia a tradição de parar, brincar e sentar para ouvir o que os mais velhos tinham para contar.

Para a atendente, o curta-metragem resgata uma memória linda dos contos transmitidos pelos antepassados, fortalece a ideia do quanto contar história faz bem para as pessoas e presta uma homenagem a sua família. “Foi muito bom poder participar e lembrar como nossa família era, de onde nós viemos e de onde vem o que a gente é hoje”, declara.

O marceneiro Jussie Cardoso Candido, 40 anos, vive o pescador Rubens e a filha Sofia Franco Cardoso interpreta Márcia nos tempos da infância. Piu, como é conhecido, sempre ouviu da irmã sobre o sonho de fazer um filme. “Foi muito bacana, muito divertido participar das gravações. Vai ficar um filme muito top. Eu não pude escutar muita história porque eu era um pouco mais novo. Minha irmã escutou bastante. Achei muito bacana a minha mãe ter somado um pouco mais da cultura porque estas histórias ficavam muito guardadas. Ela pôde somar mais um pouco”, destaca Jussie. Aos sete anos de idade, Sofia, que é estudante do 2º ano do ensino fundamental, conta que seus pés e mãos gelaram na hora de gravar porque ficou nervosa. “Eu não imaginei que era assim que fazia um filme. Eu achei que gravava uma vez só. Mas, não. Grava quatro, cinco, seis, sete, oito vezes”, brinca. Sofia encarou o desafio e ficou feliz de participar.  

Durante as filmagens, Márcia reviveu o momento de ouvir e contar histórias no quintal da casa. “Minha família foi envolvida em uma roda de conversa em torno dos contos antigos e alguns depoimentos trouxeram as memórias e as alegrias das histórias que uniam todos. Os sets foram muito rústicos e conseguimos fazer um trabalho bem produtivo. A equipe foi extremamente diferenciada, carinhosa e dedicou muita atenção nos mínimos detalhes tanto no acompanhamento dos atores quanto no olhar diferenciado, oferecendo várias possibilidades de gravação das cenas”, comemora a diretora Márcia Cândido.

Texto: Simony Leite Siqueira

Fotos: Equipe IMA 

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