Os cenários, os objetos, as mobílias, os figurinos, a ambientação, as construções, todos os elementos de arte de um filme contam aquela história. Um dos grandes desafios da direção de arte é superar a simples representação destes elementos artísticos para valorizar de forma mais profunda e sensível o modo de existir de cada coisa na relação com a história, com o personagem, com os ambientes. Quem vem orientando as autoras e autores da terceira edição do Curta Vitória a Minas a pensar e a elaborar um planejamento de arte para as ficções e documentários é a diretora de arte, Ana Paula Cardoso. O curso de formação audiovisual básica para transformar o que contaram em filme começou no sábado (13/04) e prosseguirá até dia 28/04, no Hotel Terraço, em Guarapari (ES). Nesta entrevista, a professora convida os (as) realizadores (as) para um mergulho em busca da compreensão da grandeza de cada história.
CVM III – O que faz a direção de arte?
Ana Paula Cardoso – Esta é uma pergunta fácil e difícil ao mesmo tempo porque a direção de arte tem um olhar tão amplo sobre a cena, abrangendo desde o que de fato fisicamente está na cena até um clima, algo que vai além e que cria toda uma atmosfera, produz significados, nos leva a determinadas épocas, nos envolve, desde os objetos, mobiliário até densidade, a dinâmica da cena. E, naturalmente, é preciso estar muito próximo do diretor na concepção da imagem.
CVM III – As autoras e autores do Curta Vitória a Minas III estão elaborando suas primeiras obras, documentais ou ficcionais. Como compreender e extrair esta essência da história para planejar a direção de arte?
Ana Paula Cardoso – Justamente por nunca terem feito seus filmes, a matéria prima é muito bruta e muito delicada, ao mesmo tempo. Bruta no sentido ainda de não lapidada, mas delicada porque vem sem vícios. Nesta edição, trabalha-se muito com as memórias, com algo muito precioso. Eu tenho sempre um cuidado muito grande de poder pensar a imagem ainda com uma grandessíssima honestidade. Todos os participantes do projeto têm esta honestidade no olhar. Não é um olhar condicionado. É um olhar muito honesto sobre suas próprias histórias, sobre como veem suas histórias. A minha tentativa é fazer com que eles percebam como estas memórias e este desejo de contar estas histórias podem trazer estas ideias mais puras, sem os vícios e os condicionamentos.
CVM III – Em sua aula, você falou que não basta escolher os objetos de cena, por exemplo, é preciso que estes objetos tenham alma, que os elementos de arte ganhem relevância. Nesta perspectiva, por exemplo, um fogão de lenha escolhido para estar na cena não pode existir de qualquer jeito. Como encontrar estas camadas mais profundas?
Ana Paula Cardoso – Eu acredito que, para além do objeto em si, ele tem um modo de existir. Eu fico muito mais preocupada com o modo das coisas do que exatamente com as coisas. Qual é o modo deste tal fogão, como ele existe? Não é um fogão apenas disposto no ambiente. É um fogão que tem vivências, tem história, cozinhou para a geração de uma família, participou de uma história de vida. Pensar que ele também tem uma história de vida. Como a gente transforma isso? Na aparência, na textura, nos registros, num fogão que é quebrado, que tem uma rachadura. Assim como as pessoas, os objetos e ambientes também têm as suas histórias. Esta coisa de que aquele ambiente em si pertence a um recorte temporal, eu não acredito, porque para estar ali, ele teve uma vida pregressa, tem o que contar. Se a gente acreditar que cada objeto ou aquele ambiente tem algo a contar, fica mais fácil compor estes lugares, chegar neste lugar mais nobre.
CVM III – De que forma pode-se organizar todos os elementos do universo da arte de uma obra, como figurino, cenografia, mobília, objetos de cena, sem perder a unidade, a identidade visual, a linguagem de arte definida para aquele filme?
Ana Paula Cardoso – É importantemanter a equipe muito envolvida com a essência criada para começar a história e fazer com que o trabalho da equipe esteja sempre sendo acompanhado por todos. Além das direções, eu tento manter a equipe muito unida. A gente tem que tentar enxergar o trabalho do outro. Eu tenho esta preocupação muito grande de fazer com que a equipe de arte esteja muito amalgamada em seus trabalhos, em seus processos, para que possamos continuar perseguindo a mesma coisa.
CVM III – Quando as autoras e autores voltarem para suas cidades, eles irão mobilizar as pessoas da comunidade para contribuir neste processo da direção de arte. É importante entender como coordenar esta equipe que, na maioria das vezes, também está tendo a sua primeira experiência na criação destes elementos de arte.
Ana Paula Cardoso – Por isso eu insisto tanto no início do processo que é criar (seja através de referências, de recortes, ou algum outro método), criar um projeto inicial, de onde tudo surge, para que aquilo vire – o que eu chamo de caderno da arte – uma bíblia ou um lugar de onde tudo do parte. E que isso possa estar estruturado, primeiro, para compreender, para orientar para onde vamos, o que vamos fazer. Segundo, para unir todos que estão trabalhando para que possam estar sob o mesmo olhar, mesmo que este olhar mude porque o processo é muito vivo, porque vamos transformando a partir da colaboração de quem trabalha na equipe. Este também é o papel do diretor de arte: fazer com que a equipe esteja sempre muito junta no sentido da sua própria produção.
CVM III – Quais são os principais deslizes que a direção de arte comete na hora do planejamento de arte da obra?
Ana Paula Cardoso – Trabalhamos muito na opressão do tempo. Temos prazos, precisamos criar e realizar. Os deslizes são quando a equipe para de se enxergar. É quando, por causa dos prazos corridos, da corda no pescoço, cada um vai para um canto e não olha o que o outro está fazendo. Para mim, o maior deslize é quando a equipe se desconecta.
CVM III – Você disse na aula que o expectador também cocria esta direção de arte ao assistir a obra. De que forma a direção de arte pode abrir caminho no filme para a vivência do expectador?
Ana Paula Cardoso – O papel de todos que fazem um filme precisa ter uma certa generosidade no sentido de abrir um espaço para que quem assiste possa também trazer o que vê, revisitar o seu próprio acervo pessoal e devolver aquilo como pode, como vê porque tangencia um pouco da visão de mundo, do que viveu na vida. O mais interessante é poder dizer sem mostrar. Quais são as imagens que não são apresentadas de pronto? Como podemos ter o expectador como um cocriador da própria imagem, como ele pode transformar aquilo que vê em algo significativo para ele? Eu entendo isso como uma generosidade de quem faz ao colocar mistérios, enigmas dentro da imagem para que o expectador possa olhar e dizer “Meu Deus, como isso me tocou. Como isso tornou-se importante para mim”. A arte tem a possibilidade de criar esta abertura. Embora tudo esteja ali, é preciso que isso seja feito com a delicadeza de incluir quem vê na própria criação da imagem final. Se quem vê tiver a possibilidade de colocar a sua maneira de ver o mundo, é lindo.
A gente pode lançar mão de padrões. Vai ser reconhecido e compreendido. Mas os personagens são seres complexos e raros e vivem suas próprias contradições assim como eu, você, todos nós. Como os ambientes e as imagens que estão relacionadas àquele personagem (sejam passagens, ambientes, exteriores) podem refletir esta complexidade e esta raridade que compõem este personagem. É necessário comunicar e fazer com que quem assiste entenda, acompanhe, vá junto, mas existe ali a medida da sensibilidade, da cocriação. Isso faz com que quem assiste também seja um cocriador.
Texto: Simony Leite Siqueira
Fotos: Gustavo Louzada