The Jet Boys, foi a primeira banda de rock’n’roll do Espírito Santo
Uma chuva torrencial caía sobre Colatina numa noite inesperada em meados da década de 60. As águas intensas em frente à Rádio Difusora intimidavam o deslocamento para qualquer outra parte da cidade.
Os rapazes Gilson Martins e Romiques Oliveira estavam ali diante do tempo tocando violão. De repente, Mique, como todos chamavam Romiques, propõe ao amigo: “Gilson, vamos montar uma banda?” Como todo garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones, os rapazes ansiavam por uma música diferente dos conjuntos tradicionais dos bailes frequentados pelos mais velhos.
Os meninos se espelhavam na rebeldia do novo som contagiante e contestador trazido pelo rock and roll, uma combinação de jazz, folk, country, rhythm and blues. Assim, nasce The Jet Boys, uma das primeiras bandas de rock do Espírito Santo.
Quase cinquenta anos após essa noite, parte dos componentes da banda se reencontrou em Colatina na quinta-feira (30/03/23) para gravar cenas do documentário “Colatina: a Princesa do Rock”.
A história selecionada pelo projeto Curta Vitória a Minas II tem roteiro, produção e direção do jornalista Nilo Tardin. As filmagens começaram com um bate-papo descontraído, cheio de causos e recordações emocionantes dos músicos, sentados à mesa de bar do Liverpub, casa de shows dedicada ao ritmo, de propriedade do músico Moacyr Dalla.
Da antiga formação da banda estavam presentes o guitarrista solo, Gilson Martins, o baterista Beto Pato Rouco, o também baterista Jessé Pato Rouco, ambos irmãos, que integraram o conjunto em épocas diferentes, e o contra-baixista Luis Barbosa. O outro contra-baixista, Argeu Douglas, e o vocalista, Alonso Alves, não puderam estar presentes. Todos celebraram o saudoso componente e fundador da banda, Romiques, falecido em 16 de setembro de 2015.
A conversa contou com a participação de outros ícones do período como o proprietário rural Chico Rossi, responsável por ceder a fazenda para a realização do Festrock ao ar livre, o Woodstock colatinense, além do Michel Zouain, que falou sobre sua participação no consagrado Festival de Woodstock, em Bethel, no estado de Nova Iorque, nos Estados Unidos, no ano de 1969.
Este dia de gravação chegou ao ápice com o show noturno da banda no Liverpub para um grupo de 40 convidados, reunindo no elenco amigos, familiares e fãs do grupo musical. O irmão de Romiques, Roldenir Oliveira, marcou presença ao lado da esposa Nilsimar Lavagnoli de Oliveira. A galera chegou aos poucos até completar o set animado por uma coletânea de clássicos do rock internacional e nacional. Para marcar ainda mais o encontro de gerações de músicos locais, a jovem cantora Gabriela Terra fez uma participação especial ao apresentar seu show experimental combinando música e dramaturgia com potência e engajamento social. A noite trouxe ainda o talento do cantor Abdalla Kilsam.
A trajetória: do violão na calçada aos clubes
Antes mesmo da banda tomar forma e conteúdo, os garotos se juntavam nas calçadas para tocar violão. A turma aprendia os segredos do instrumento com os tocadores mais experientes porque gostavam de música, queriam se divertir e ainda impressionar as moças com serestas sob as janelas das casas.
Algumas vezes, precisavam correr da polícia e da vigilância privada nas ruas porque andar com um violão nas costas nesta época era sinal de malandragem para os mais conservadores e moralistas.
“Começamos tocando em festinha de aniversário, ou no Colégio das irmãs do Divino Rei, que não admitiam pessoas do sexo masculino, mas abriram uma exceção, uma vez, a pedido das garotas que estudavam lá, pra tocarmos num domingo, numa festa. Fazíamos um som, mas ainda sem compromisso e profissionalismo”, conta o contra-baixista Luis Barbosa, que atuou na primeira formação da banda.
Coube ao Gilson e ao Romiques a criação oficial do conjunto, como se chamava um grupo de músicos. O nome The Jet Boys veio como sugestão do Mique, que assumiu a guitarra base. “A meu ver, os rapazes à jato traduzia justamente algo a mais, dinâmico e eletrizante, saindo da monotonia das canções, sem nenhum desprezo ou desmérito ao estilo da época. O tempo corria muito lentamente como o caudaloso Rio Doce, que só acelerava nas enchentes. Essa metáfora talvez explique o tédio da nossa juventude que, vulgarmente falando, estava de saco cheio”, brinca Gilson.
Como eram menores de idade, os irmãos Beto e Jessé Guimarães Peixoto precisaram de autorização do Juizado de Menores e da Ordem dos Músicos para comporem a banda. Beto Pato Rouco foi o primeiro a tocar deixando-a, alguns tempo mais tarde, para compor o grupo de baile Almir e Seu Conjunto. Seu irmão Teco, como também é conhecido Jessé, assumiu a bateria dos boys.
Os garotos vinham de famílias humildes, trabalhavam de manhã, estudavam à noite e se apresentavam nos finais de semana. A turma não tinha o intuito de ganhar dinheiro, mesmo assim, o divertimento acabou gerando renda. Os instrumentos eram precários nas primeiras apresentações. Os recursos para a renovação dos equipamentos vieram após uma série de shows feitos pelos meninos para a campanha política para prefeito do candidato Pergentino Vasconcelos. A modernização dos instrumentos contribuiu para o aperfeiçoamento dos músicos e para maior projeção da banda dedicada a fazer cover de sucessos dos Rolling Stones, Beatles, dentre outras bandas internacionais, e de bandas nacionais como Renato e Seus Blue Caps, além de sucessos consagrados de cantores como Roberto Carlos e Jerri Adriani.
“Este período foi marcado pelo início da guitarra elétrica. Certa vez, fomos fazer o show no Cine Floresta. A banda havia comprado pra mim uma guitarra elétrica de alavanca. O carro que fez a propaganda do show, aqueles jipes com alto falantes em cima, saía divulgando: Hoje, grande show do The Jets Boys, no Cine Floresta, com Gilson Martins estreando a sua guitarra de alavanca. Poxa, era muita alegria”, relembra o guitarrista.
The Jet Boys se apresentou em festivais, nos clubes da cidade, entre eles, o Clube Recreativo, Clube América, ACD, o Iate Clube, Clube Cruzeiro, e também nos cinemas, no Cine Floresta, Cine Alhambra e no Cine Idelmar. A turma ainda pegou a estrada para se apresentar em cidades do Vale do Rio Doce chegando até Governador Valadares, em Minas Gerais, e em cidades da Grande Vitória, no Espírito Santo.
Iê, iê, iê e muitas histórias
O foco de inspiração da banda era o rock. Os músicos colatinenses acompanharam a efervecência do iê, iê, iê da Jovem Guarda, um movimento cultural brasileiro com influências do rock e do soul norte-americano. O ritmo comandado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa influenciou a moda, o comportamento e o vocabulário da juventude naquele período.
“Era uma época em que os jovens estavam começando a reivindicar mais liberdade para sair daquele jugo um pouco tirano dos nossos pais. Na nossa época, a banda não tinha muito cunho político e nem revolucionário. O único lado revolucionário era poder se expressar melhor, se vestir diferente, usar um cabelo grande. Foi quando começou a surgir uma atitude rock”, relata Gilson.
Os meninos alcançaram prestígio e tocaram com uma representante da Jovem Guarda, a cantora Martinha, no Clube Aterac, em Vila Velha. “Neste dia chegamos um pouco atrasados. Estávamos vindo de kombi acompanhados da Aurea Bitencourt, filha do Geraldo Genel. Ao chegarmos ao clube, o povo correu e rodeou a kombi, pois achavam que era a Martinha. Foi o maior barato!”, lembra Gilson.
Outro causo da época também se relacionava com um show em Vila Velha, desta vez, no Clube Arci. Os meninos pegariam o trem para Vitória, porém, dois integrantes perderam o embarque. Os demais componentes conseguiram embarcar para a capital e, ao chegarem, partiram direto para o clube. As horas iam passando e se aproximava o horário do show marcado pra 22 horas.
“Tínhamos que pegar o trem em Colatina com todos os instrumentos porque a gente não tinha carro. Só que o Mique e o Alonso perderam o trem. Viemos eu, o Gilson e o Beto. Chegamos e fomos para o clube. Deu nove horas, nove e meia da noite e nada de aparecerem. Se eles não aparecessem, além da multa, teríamos que devolver o dinheiro dos ingressos ao público. Nós ficamos muito preocupados. Quando deu dez horas, o Gilson falou: “Vamos subir e fazer!” De repente surgem o Mique e o Alonso de taxi. A estrada de Colatina a João Neiva, naquela época, era de terra. Os meninos vieram de taxi e chegaram quase dez horas. Resultado desta balada: com o cachê que ganhamos do clube tivemos que pagar o taxi”, conta rindo Luiz Barbosa.
No ano de 1967, na Festa de Colatina, no palanque público instalado ao lado do Iata Clube, a rapaziada acompanhou as grandes estrelas nacionais daquele momento, Jerry Adriani, Wanderley Cardoso e Rose Mary. Um dos shows mais importantes da carreira dos roqueiros foi arranjado pelo Moacyr Dalla, o Moacirsinho, o Moá, ferrenho incentivador da banda junto com seus pais. A apresentação aconteceu na badalada Choupana, em Guarapari, logo depois da Banda The Brazilians Beatles terem passado pelo espaço, The Jet Boys levou o som dos meninos de Colatina para o litoral sul. “Neste dia tinha gente pendurada nas soleiras das varandas das casas. Eu fazia muita onda tipo: tocar com a guitarra nas costas, deitava no chão…hiiiii….levava o povo ao delírio. Foi extraordinário. Tocamos a música de sucesso chamada “Para Pedro”, que irritou o prefeito da cidade da época. No dia seguinte, por ordem dele, três tratores derrubaram a Choupana”, conta Gilson.
Nilo Tardin era um adolescente neste período e assistiu às apresentações dos meninos colatinenses. Segundo o diretor, The Jet Boys usavam tamancos, sapato cavalo de aço e calças boca de sino e ainda pagavam a costureira para colocar uma nesga na calça que varria o chão. “Esse período trouxe uma mudança na moda, no comportamento e nos costumes. A música foi apenas o fio condutor. O rock trouxe o barulho da música. Somos uma geração barulhenta, até meu comportamento é barulhento. Essa é a atitude. Uma geração com atitudes contestadoras. Não queríamos saber se a ordem, os bons costumes e a religião queriam nos impedir de nos influenciar. Quero ser eu, independente de qualquer coisa”, relata o diretor do documentário sobre a história.
O fim da banda e os novos rumos
The Jet Boys tocou por cinco anos. A banda se dissolveu no início dos anos 70. Parte dos integrantes seguiu a carreira musical, como Gilson, Jessé e Beto, e outra parte construiu outras trajetórias profissionais.
“Acho que contribuímos para um despertar dos jovens, para uma nova maneira de ver a música, com guitarras elétricas, saindo daquele estilo mais tradicional dos nossos pais. Os jovens se identificavam com a banda, como se fôssemos uma referência, um farol, porque a música é um farol pra qualquer geração e, nesta época, fomos um farol pra essa juventude e deixamos muitas lembranças”, explica Gilson Martins.
O guitarrista solo deixou Colatina nos anos 70, em direção à Vitória, para construir uma carreira solo e autoral. Nesta mesma época partiu para a França, onde mora há 40 anos, firmando-se como cantor, compositor e criador do estilo zouk brasileiro, inspirado no ritmo fundado pelo grupo Kassav’, originário de Guadalupe e Martinica, no Caribe. Hoje é conhecido no meio artístico pelo nome Gil Ayô.
Luis Barbosa deixou a banda em 1967 quando se casou. Hoje, aos 78 anos, está aposentado e continua o trabalho na área da contabilidade.
“O impacto do rock na vida da gente? Foi muito bom porque tirou a gente daquele marasmo. O jovem, naquela época, principalmente o jovem mais pobre, não tinha voz, não tinha espaço e o rock deu esse espaço pra que os jovens pudessem protestar e se divertir”, declara Luis. Os irmãos Beto e Jessé Pato Rouco trilharam outros caminhos na capital capixaba. Os dois tocaram no conjunto The Lonellies. Beto ainda integrou o conjunto de Edson Quintaes e Teco fez parte da Banda Mackenzie.
Pra nunca esquecer
The Jet Boys é a história do Mique, Gilson, Luis, Beto, Jessé, Alonso e Argeu, mas também envolve outros personagens que atuaram no palco ou nos bastidores dos shows. Ainda compuseram o conjunto musical o Zezinho Boca de Sapo, Luizinho Barbosa, Luiz Tatagiba, César Peruti, o saudoso João Miguel e o saudoso Tadeu Tardin que dava umas palas, cantando músicas de Roberto Carlos.
A irmã Dulce e todas as irmãs do Colégio Divino Rei foram importante na trajetória porque emprestaram a kombi pra transportar a banda e os instrumentos e cederam o espaço para apresentações. O professor Telmo Mota Costa transportou a banda até os shows mais distantes, assim, como o Geraldo Genel, dono de uma oficina de toca disco.
Outros baluartes: Zelier Portugal, Afonso Portugal, Geraldo Pereira, Pergentino Vasconcelos e Paulinho Baixote. Também marcaram a história da banda com seu carinho e incentivo, os familiares de Mique, seu pai Álvaro Sebastião de Oliveira e sua mãe Auzilia Serafini de Oliveira. Tinha ainda o Tio do Mique, o Moacir de Oliveira, que assumiu a fabricação dos amplificadores da banda.
The Jet Boys também é a história das 21 moças que compunham o Fanclube. Uma delas é a Zezé Vasconcelos, uma grande apoiadora dos músicos. Quem não perdia uma apresentação era a Maria Rosângela Coutinho Pertel. Conheceu o grupo aos 13 anos de idade. “Quando fiz 15 anos, em 1967, inovei na época, ao convidar os Jet Boys pra tocarem no meu aniversário, numa festa simples realizada na minha casa. Mas foi o maior sucesso porque não era comum levar os conjuntos em casa para tocar. Mas eu era futurista, eu acho, né?! Isso foi muito maravilhoso”, conta Rosângela. Hoje, aos 70 anos de idade, a garota reencontrou seus ídolos no show realizado no Liverpub para a composição do documentário.
“Os Jet Boys marcaram a minha adolescência. Rever a banda foi meu sonho de consumo. Eu fiquei eufórica de tanta alegria. Tirei fotos com a banda pra mostrar para os meus filhos e para o meu marido. Quando eu soube do show, estava no aniversário de uma amiga, pedi desculpas pra ela, porque não podia perder essa chance única de rever a banda. Eu sou filha de Colatina e amo Colatina. Os Jet Boys é uma das nossas culturas raiz”, celebra Rosângela.
Os roqueiros vibraram ao reencontrar os fãs após décadas desde o fim da banda e se sentiram lisonjeados de participar de um filme sobre o pioneirismo do rock em Colatina. “A equipe de gravação foi maravilhosa, atenciosa, simpática, tudo de bom. O Nilo, com essa ideia fantástica, me lisonjeou e mostrou que Colatina reconhece os seus frutos, as suas crias, nós não somos órfãos. Espero que seja a primeira de uma grande série de filmes”, destaca Gilson Martins. As gravações do documentário “Colatina: a Princesa do Rock” começaram na quarta-feira (29/03/23) e prosseguirão até domingo (02/04/23). Esta é a décima história gravada nesta edição pelo projeto Curta Vitória a Minas em cidades capixabas e mineiras que se desenvolveram no entorno da Estrada de Ferro Vitória a Minas.
O projeto é patrocinado pelo Instituto Cultural Vale, por meio da Lei de Incentivo à Cultura, e conta com a realização do Instituto Marlin Azul, Ministério da Cultura/Governo Federal.