Autores experimentam cinema de grupo

Para o cinema de grupo qualquer pessoa que possua um corpo pode produzir uma imagem que sempre carregará uma infinidade de significados. E uma imagem quando vai para o mundo, mesmo que contenha variadas intenções, encontrará outras inúmeras impressões dependendo com quem se depare pelo caminho. Isso porque a imagem também pensa e provoca novos pensamentos.

Um grupo de estudiosas da Universidade Federal Fluminense (UFF) está acompanhando a imersão audiovisual dos dez autores de histórias selecionadas pelo Curta Vitória a Minas II para propor experimentações e dispositivos do cinema de grupo. Nesta entrevista, Mariana de Lima, uma das oficineiras, graduada em Cinema, que pesquisa e experimenta a manifestação da palavra e da voz no cinema e no rádio, explica como esse processo contribui para sensibilizar o olhar e provocar novos jeitos de criar imagens e de enxergar o mundo ao redor e dentro de cada um.

Olhe para uma cena audiovisual projetada numa tela qualquer. O que você enxerga? As obras transmitem apenas as intenções de quem a produziu? Quem assiste também utiliza seu repertório para interpretar uma imagem? Qualquer pessoa pode criar uma obra audiovisual? O que acontece quando se muda a perspectiva do olhar diante de uma mesma imagem e som?

CVM – O que é o cinema de grupo?

Mariana – Essa é uma boa pergunta porque definir isso sempre partiu da prática. O que a gente faz é experimentar o cinema a partir de exercícios de criação, produção de imagem e som. E o primeiro pressuposto do cinema de grupo é que qualquer pessoa pode fazer. Porque antes de ser a sofisticação dos equipamentos e da câmera, o cinema é um gesto de corpo.

É sensibilizar o seu olhar, chegar um pouco mais perto, medir as distâncias. O cinema é um gesto de corpo, e corpo todo mundo tem. E pra que todo mundo comece essa experimentação a gente cria um ponto de partida comum que são os dispositivos. Os dispositivos são jogos formais com imagem e com som, um conjunto de pequenas regras que, ao mesmo tempo, delimita o contorno da imagem e amplia as possibilidades de invenção.

No primeiro dia dessa nossa imersão aqui propusemos um dispositivo que se chama “Longe, perto e dentro”. Convidamos cada pessoa a fazer três fotografias de um mesmo objeto: uma de longe, uma de perto e uma de dentro, para, entre muitas coisas, perceber o quanto o posicionamento do nosso corpo interfere na imagem que é criada.

CVM – Esses exercícios são uma tentativa de mostrar a diversidade do olhar para fugir desta tendência do cinema convencional de deixar tudo homogêneo?

Mariana – É um exercício de sensibilização do olhar e de experimentação da linguagem. O filme é quando uma ideia toma forma em imagem e som, e essas formas podem ser as mais diversas possíveis. Então, os dispositivos trabalham pra que experimentemos diferentes tipos de linguagem e pra que impliquemos o nosso corpo nessa produção.

Às vezes, tem-se essa ideia de que a câmera vai somente traduzir um mundo que já está aí e que não cria o mundo também. O dispositivo nos leva a perceber que o nosso corpo, nosso olhar, nossas escolhas interferem na imagem criada, não no sentido de ser um domínio sobre a imagem, mas enquanto participante do nascimento dela mesmo.

CVM – O que o cinema de grupo quer alcançar?

Mariana – Mais do que qualquer coisa, o dispositivo torna muito simples esse manejo do cinema. Porque fazemos quase tudo com celular, com o que se tem à mão. O dispositivo trabalha pra que seja possível enxergar o cinema como um gesto possível, cotidiano. Um jeito diferente de olhar pra uma mesma coisa. Sensibilizar o olhar pra experimentar outros modos, pra reparar os detalhes, pra perceber as pessoas, isso é cinema. Os dispositivos trabalham por isso, pra ver o cinema como um gesto cotidiano.

CVM – De que forma o cinema de grupo está acontecendo na oficina?

Mariana – A cada dia projetamos e assistimos juntos o dispositivo que propusemos no dia anterior. Esse é um momento fundamental no cinema de grupo que é o ver juntos. A gente projeta e todo mundo assiste a essas mesmas imagens. Percebemos que aquela imagem é mais do que aquilo que eu fiz, ela é também o que ela faz nas pessoas. Esse é um momento chave, pra se perceber a força autônoma da imagem, notar que ela pode ser muito maior do que só o pensamento que tenho sobre ela. A própria imagem tem pensamento. Por isso que o cinema é essa coisa assim incapturável, não é bem o que eu quero fazer, mas o que a imagem faz em mim também.

CVM – Isso foge daquela concepção convencional de um emissor que produz uma imagem e domina um receptor que recebe essa mensagem de um mesmo jeito junto com outros emissores dentro de uma grande massa?

Mariana – É a gente começar a entender as nossas escolhas não enquanto um domínio sobre a obra feita. Esta obra toma corpo e começa a produzir coisas que nem eu (emissora) sabia que ela produziria.

Um outro pressuposto muito importante do cinema de grupo é que assistimos às imagens com autoria não identificada por dois motivos. O primeiro é porque, às vezes, ficamos com vergonha do que vão pensar da gente, da imagem que eu fiz, porque ela fica muito carregada de pessoalidade. Então, assistimos com a identificação em segredo. Ninguém vai saber quem fez. As pessoas ficam mais livres para a criação e a segunda coisa é que acessamos a imagem de maneira mais direta, sem ser mediada pelo que eu já carrego de referência da pessoa que a fez.

CVM – Qual o objetivo de trazer esta experiência para o curso?

Mariana – Eu sinto que a gente tá aqui para ativar processos de criação. Porque os dispositivos, além de proporem tarefas muito objetivas, muito delimitadas, como: tire uma foto, tire uma foto de perto, filme por um minuto… eles são também uma espécie de companhia, porque sugerimos um dispositivo hoje pra ser entregue amanhã, a pessoa vai dormir com esse dispositivo na cabeça. Talvez esse dispositivo vai participar dos sonhos dela. Essa espécie de companhia continuada é um jeito de manter ativo o processo criativo em cada um. Além de convidar à experimentação de linguagens menos convencionais, mais estranhas, diferentes mesmo. Então, é pra manter o processo criativo aceso o tempo todo e pra que se possa experimentar vários modos de fazer.

CVM – De onde vem esse grupo?

Mariana – Todas nós, eu, Cintya Ferreira e Márcia Medeiros, minhas companheiras de trabalho, experimentamos essa prática antes de nos tornamos pessoas que coordenam grupos por aí. Nós participamos de um grupo dentro do laboratório Kumã, vinculado à Universidade Federal Fluminense (UFF). Lá, há uns dez anos, vem se experimentando e pesquisando este tipo de aproximação com o cinema via dispositivos e exercícios com imagem e som. Nosso trabalho vem de uma pesquisa vivida neste laboratório e que agora está sendo replicada. Na verdade, esse método foi feito para ser deturpado. A cada momento que replicamos em outros lugares, o método sofre as interferências que aquele lugar pede.

CVM – É um movimento que também vem para combater algo?

Mariana – Sinto que sim, existe uma porção de coisas que a gente quer confrontar. Talvez a maior delas seja a hegemonia do olhar, os caminhos que estão excessivamente pisados, um modo de olhar gasto que produz autoritarismo e restrição. Ao combater isso talvez a gente possa experimentar alguma coisa que nunca fizemos. Porque a criação é quando sai um pouco do nosso controle né. Então sim, tem um confronto aí direcionado tanto à ideia de que a gente controla a imagem, quanto ao controle que as imagens hegemônicas têm sobre nós.

CVM – O cinema de grupo quer também formar receptores da imagem?

Mariana – Tem algo muito formativo com essa prática que tem a ver com atenção. Qual é o tamanho da atenção que eu vou dar a cada imagem existente? Qual é o cuidado que eu vou dedicar a um som? Uma mesma imagem assistida com cuidado pode virar outra. Se eu assisto junto com você, ela pode virar outra, porque não é só o meu olho que vê, mas o seu também me ajuda a olhar. Vamos conversar sobre essas ideias aqui.

É uma experiência formativa neste sentido, de exercitar e ativar modos de atenção, modos de cuidado. A gente usa muito esta palavra “cuidado”. Junto com as práticas de cinema existem as práticas de cuidado, cuidado que vai nascendo entre nós, entre nós e as imagens… A força viva da imagem tá metade nela e metade em nós, e o que a gente quer é se encontrar no meio desse caminho.

Texto: Simony Leite Siqueira

Fotos: Gustavo Louzada

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