“Os Amigos da Água” e o mergulho na existência humana

Embora a tecnologia conecte cada vez mais as pessoas espalhadas pelo mundo, a humanidade nunca pareceu tão só. Uma das histórias selecionadas pelo Curta Vitória a Minas III para ser transformada em filme quer mostrar como a solidão, o distanciamento e a indiferença marcam as relações humanas na contemporaneidade. Ao mesmo tempo, como a compaixão e a solidariedade podem ser um caminho de reconexão e transformação pessoal e social. As gravações do curta “Os Amigos da Água”, do diretor Pedro Vinícius Siqueira Batista, aconteceram de 11 a 13/07 em Governador Valadares (MG).  

A ficção aborda os conflitos entre dois vizinhos, mas penetra na essência das relações. Morando um ao lado do outro, cada um vive o isolamento da própria rotina simples preenchida por pequenas tarefas. De um lado, uma idosa, viúva, religiosa e dedicada ao bordado. Do outro lado, um idoso doente e apaixonado por sambas antigos. Quando a vida de um começa a invadir o espaço do outro, a divergência se aprofunda e pode se agravar depois que começa a faltar água.

Esta história virou filme porque o tema chama a atenção do roteirista, produtor e diretor de 22 anos de idade. Pedro nasceu em Paulo Afonso, na Bahia, viveu no município vizinho de Santa Brígida e, a partir dos 7 anos de idade, por causa do trabalho sazonal do pai na área da construção civil, morou em Pernambuco, Alagoas, Pará, Maranhão, Rio de Janeiro e, agora, reside em Minas Gerais. A oportunidade de morar em vários lugares e vivenciar diferentes experiências o estimulou a refletir um pouco mais sobre como as pessoas vivem e se relacionam. Ele conta que, em algumas culturas, havia mais acolhimento, mais trocas. Outras eram mais individualistas, distantes.

Foi durante o aprendizado na área das ciências da saúde que o estudante de Fisioterapia observou como a segregação nas relações afeta ainda mais os idosos que, além dos problemas físicos, enfrentam a solidão, o abandono e o preconceito. “Eu vi que o idoso poderia trabalhar esta história no filme de uma forma mais profunda. Para o idoso, essa segregação o atinge em dobro, ele sofre em dobro, porque, às vezes, não trabalha mais, não tem mais um ambiente para se socializar. Vários idosos me inspiraram para esta história. Um deles foi um senhor que chegou ao espaço onde trabalho com muita dor lombar. Inicialmente, eu o atendi pensando na questão da dor lombar. Com o tempo, fomos conversando, nos tornando mais amigos e descobri que a esposa dele tinha morrido uma semana antes dele chegar ao tratamento. Isto foi uma coisa que me abriu muito para a questão da solidão. Ele estava muito sozinho”, lembra Pedro. Através do curta-metragem, o estudante quer despertar a reflexão das pessoas para o que o acontece com outro ao lado.

As costuras da vida e da arte

Durante a pré-produção para as filmagens, a história ganhou uma força inesperada. Para selecionar o casal do elenco, o diretor visitou uma aula de ginástica para idosos. Lá, entre os participantes, estavam o operador de estação de água e auxiliar meteorológico aposentado Braz Porfírio Santos, 73 anos, e a funcionária pública aposentada Genessi Dias Santos, 68 anos, casados há 46 anos. Os dois são contadores de histórias infantis e compositores de canções voltadas para o universo da infância. Através da linguagem do teatro e do fantoche, eles levam seus personagens para as escolas para conversar com os pequenos estudantes sobre temas educativos, como a luta contra o bullying, o combate à dengue e a prevenção aos piolhos. “Eu e minha esposa estávamos participando do grupo de alongamento. Nos chamaram para conversar com o jovem Pedro. E quando ele disse que precisava de pessoas pra atuar numa filmagem, meu coração se alegrou demais porque nós dois temos um pequeno gosto e um pouco de experiência com a arte”, revela Braz.

O convite lhe trouxe de volta as memórias da juventude. Nos anos 70, ele trabalhou como figurante em duas grandes produções do cinema: “Aladim e a Lâmpada Maravilhosa” (1973) e “Robin Hood, o Trapalhão da Floresta” (1974), ambos do diretor J. B. Tanko, que reuniam no elenco principal os comediantes Renato Aragão e Dedé Santana. “Entrei pra o cinema por acaso. Eu morava no Rio de Janeiro, havia acabado de dar baixa da vida militar no Exército e não tinha destino. Na busca por emprego, olhando os classificados, na época, vi o anúncio à procura de atores. Eles gostaram do meu físico e da maneira de lidar com a equipe. Fui contratado como figurante e nos intervalos das cenas me oferecia pra ajudar na produção”, lembra.

Naquela ocasião, Braz se registrou no Sindicato dos Artistas para abrir caminho no ramo artístico, no entanto, no período de espera entre uma produção de cinema e outra, ele preferiu disputar uma vaga numa nova profissão dentro de uma grande empresa. Tempos depois, conheceu Genessi. Os dois se casaram, tiveram dois filhos, Makelle Núbia e Maikel Braz, e construíram a vida em Governador Valadares. No período da pandemia, o casal suspendeu as atividades artísticas e pedagógicas nas escolas por causa das medidas de prevenção e distanciamento sanitário. Este ano, a chance de participar do filme veio num momento especial, pois o casal começou a planejar o retorno dos projetos educativos para 2025. Genessi gostou muito da vivência de atuar em um filme ao lado do esposo, do acompanhamento de profissionais dedicados e compreensivos e ressaltou a importância do tema da obra.

“Esta história é muito interessante porque fala de dois idosos que moram em casas separadas. Ele gosta muito de samba e preenche a vida com o rádio. A idosa tem uma vida mais integrativa com a religião, com a igreja, mais voltada para as coisas manuais, o bordado, o fazer a comida. A gente fica muito feliz de participar deste filme que vai colaborar com a sociedade porque a história vai refletir em outras pessoas. Quando estiverem assistindo, as pessoas vão refletir sobre as dificuldades do idoso de chegar em uma certa idade e ter de enfrentar problemas como a mobilidade e a solidão. Estamos gostando muito de participar”, relata Genessi.

A vivência

A escrita é um exercício quase diário para Pedro. Escreve poesias, contos, ficções e não ficções. Ele sempre gostou muito de ler. Mais novo, preferia os gibis. Hoje adotou os clássicos da literatura brasileira e estrangeira, embora se enverede também por leituras mais acadêmicas nas áreas da Antropologia, Sociologia e da Economia. Como um leitor voraz e curioso, o estudante havia lido sobre a linguagem do cinema, em especial, sobre a fotografia. Não imaginava um dia fazer um filme e nem o que iria descobrir na prática.

No decorrer da imersão audiovisual do Curta Vitória a Minas III, realizada em abril, um universo novo de conhecimento se abriu diante dele ao experenciar de perto, com a orientação de profissionais da área, como se dá a criação cinematográfica. As técnicas de escrita do roteiro, a elaboração dos planos fotográficos e a construção da direção de arte revelaram-lhe como uma obra é montada dentro do espaço ilusionista da tela. Ao chegar ao set de filmagem, novos aprendizados se somaram ao absorvido no curso.

“A gravação foi uma experiência incrível! É muito diferente ver aquilo que você escreveu dentro de uma câmera. Faz a gente ver o cinema de uma forma diferente. Os atores são muito joviais e carismáticos e interpretaram muito bem os personagens. A equipe foi maravilhosa, todos os profissionais que trabalharam são bem capacitados e foram muito atenciosos. E uma das coisas mais interessantes: a gente escreve pensando em gravar, grava pensando em montar. E quando formos montar, vamos pensar na exibição. A equipe ajudou muito a conseguir colocar na câmera e no som tudo o que pensamos, o nosso objetivo com o filme, o nosso ideal do filme”, destaca Pedro Vinícius.

Texto: Simony Leite Siqueira

Fotos: Equipe IMA

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