O Pássaro dos mistérios da vida e da morte

A vida é uma estrada em direção à morte. As pessoas preferem não pensar, não tocar no assunto. O desconhecido desperta medo, angústia e tristeza. Ninguém quer imaginar o próprio inexistir, nem o inexistir do outro. No entanto, a ideia da finitude volta a incomodar. Não saber o dia, a hora e nem a forma da morte é um bálsamo, um presente da sabedoria divina para a existência humana.

Se morrer é o fim ou a passagem para uma nova vida, permanece o mistério. Apesar disto, a morte é caprichosa, arruma um jeito de anunciar a sua chegada. A vida, a morte, o tempo e suas imprevisibilidades formam a inspiração para o filme “O Pássaro”, da diretora Luzia Di Resende, moradora de Ipatinga (MG), uma das selecionadas pelo Curta Vitória a Minas III. As gravações do curta-metragem aconteceram no período de 17 a 21 de julho no município mineiro localizado no Vale do Aço.

A atriz e produtora escolheu contar esta história a partir da imaginação e do olhar curioso de uma criança de 10 anos. A trama acontece a partir do sonho da garota com o pássaro de bico vermelho cuja aparição anuncia a morte de alguém próximo. As coisas se passam no período de um dia em que ela busca descobrir quem será a vítima do agourento. No lugar da amargura, do pavor e da dor comuns ao tema, a autora de minicontos fantásticos utilizou elementos do realismo mágico para tecer o enredo em que a morte brinca com seu próprio ser ousado, atrevido e inesperado.

Os objetos de cena, os figurinos, as mobílias e os cenários formam composições não naturais para realçar a fusão da realidade com o mágico. Tudo é colorido, com prevalência dos tons exuberantes e dos grandes contrastes. As escolhas fotográficas relacionadas às lentes, aos enquadramentos e à iluminação completam a composição deste universo simbólico habitado pelo invisível.

A autora inventou um conto inspirado no imaginário popular. Basta sair por aí para encontrar alguém com alguma memória sobrenatural envolvendo um pássaro, uma coruja ou qualquer outra coisa anunciadora da morte. Estas histórias nascem também das lembranças da autora dos tempos antigos da casa onde cresceu ao lado dos pais e dos irmãos. Sua mãe costuma falar que sonhar com familiar falecido é aviso de morte próxima e por perto.

“Eu gostaria que o filme transmitisse a ideia da morte e de suas possibilidades de uma forma leve, muito pelo olhar de uma criança que tem mais curiosidade do que exatamente medo e pavor. E a brincadeira é neste sentido: saber o que vai acontecer, tentar descobrir o que e com quem vai acontecer e trazer um desfecho diferenciado porque a vida é sempre surpreendente. A gente nunca sabe pra onde que ela vai, pois não é exatamente um script que tenhamos domínio de seu princípio, meio e fim. A vida tem uma série de atalhos e acho que é bem isso que o filme quer passar”, descreve Luzia.

Gerações da família

A diretora trouxe para o elenco principal mulheres de diferentes gerações da família. A menina é interpretada pela sobrinha Catarina Mendes Torrezani. No filme, a mãe e a avó da protagonista são vividas pela irmã e pela mãe da diretora, respectivamente, Ivana de Resende Mendes, 47 anos, e Celeste de Resende, 85 anos, mãe e avó da menina na vida real. A diretora e sua filha Ariel Bertola também atuam na obra.

A equipe de produção conta com a participação de outra irmã, Luiza de Resende Mendes Barros, 57 anos. Segundo Luiza, o trem e a linha trazem lembranças das viagens para a praia e das brincadeiras de contar vagão. Para ela, resgatar histórias no entorno da Estrada de Ferro Vitória a Minas, dando significados a cidades tão diferentes, e identificá-las com a linha que as atravessa, é mágico. A produtora destacou o caminho percorrido pelo filme para dar um sentido inusitado para algo tão sofrido e desconfortável.

“A morte é um assunto que evitamos falar, pensar, e essa negação é uma forma de proteção, de evitar. Se você não acredita na possibilidade da morte, não acredita na possibilidade da perda, então, de uma maneira mágica, ela deixa de existir. O filme não traz a morte como sofrimento ou algo negativo. Ele traz a ideia de que a vida não é linear. Quando o tempo resolve brincar, se desenvolver em outro tempo, numa outra lógica, invertendo o seu curso, isso nos obriga a repensar o sentido da nossa própria existência”, reflete Luiza.  

A produtora, o marido Valter Barros e a filha Bárbara Mendes Barros moram em São Paulo e organizaram as férias para participarem das gravações no interior mineiro. Pela primeira vez nesta função, Luiza, que é psicóloga e servidora pública federal, avalia a produção audiovisual como um processo complexo, pois envolve muitos elementos, exige planejamento e organização para funcionar da melhor forma. “O mais desafiador na produção é o tempo, tudo tem que ser rápido, tem que ser pensado, tem que ser criativo. Mas é muito gratificante também conhecer um processo que é muito diferente pra mim. Conhecer pessoas novas, conviver com este universo diferente, tudo foi muito enriquecedor”, celebra Luiza.

Na opinião do gerenciador de locação Valter Barros, 45 anos, a estreia na assistência de produção e na figuração foi gratificante porque trouxe desafios novos e a oportunidade de superar limites. O tema central do filme também lhe tocou. “O que mais me chama atenção na história é que, em algum momento, a gente morre e, de repente, não tem tempo de se despedir, simplesmente, não tem a chance de falar com ninguém. Acho que isso é o que traz mais reflexão: essa partida sem despedida”, avalia Valter.

A estudante do 4º ano do ensino fundamental Bárbara Mendes Barros, 10 anos, ensaiou bastante para viver sua primeira personagem no cinema. “Achei uma experiência legal. O filme tem a minha avó, a minha mãe, a minha prima, a minha tia, a diretora do filme, o meu pai, minha outra tia, meu tio. Eu até brinquei que era um filme familiar. Eu achei bem interessante a história, eu gostei, e parece um conto de fadas porque não é uma coisa comum. É um filme que precisa de muita criatividade pra ser criado”, destaca a estudante.

O empurrão

Luzia Di Resende fez curso técnico de enfermagem, na adolescência, porém, nunca exerceu a profissão. Cursou faculdade de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Cultural, tem pós-graduação em Pedagogia Empresarial e MBA em Gestão de Pessoas. Apesar dos estudos em diferentes áreas, a autora abraçou o teatro como principal atividade profissional. E tudo começou com um empurrão. Na infância, a menina e os amigos da rua penduravam lençol no varal para servir de cortina para a encenação de pequenas peças improvisadas como brincadeiras.

Ela tinha 15 anos, estava começando o segundo grau, quando o pessoal da escola passou de sala em sala para convidar quem quisesse integrar a montagem da peça “Tribobó City”, da dramaturga Maria Clara Machado, escrita em 1971. Como era muito tímida, Luzia não entrou no grupo, mas passou a acompanhar uma amiga nos ensaios. Com a ausência de uma das atrizes, ela acabou por aprender o texto e a coreografia da personagem, uma dançarina de cancan. “Eu não queria entrar no primeiro dia, na estreia do espetáculo. Eu chorava, fazia a maquiagem de novo, chorava. Foi quando me empurraram pra dentro da cena. Entrei empurrada, dançando e chorando. Foi assim que eu entrei para o teatro. E aí fiquei pra sempre”, relembra a artista.

Nos quatro anos da faculdade de Ciências Sociais, em Juiz de Fora (MG), participou do reconhecido Grupo Divulgação (Centro de Estudos Teatrais), criado em 1966, depois, integrou o Teatro e Cia, uma companhia menor formada por um grupo de amigos para montagem de peças com menos atores. Após se formar, mudou-se para São Paulo onde trabalhou com dublagem para filmes e seriados de TV.

Em terras paulistanas, conheceu um grupo de artistas baianos e, juntos, formaram a trupe mambembe “Umbigo do Bezerra” que viajou pelo estado baiano por quatro meses para se apresentar. Ainda na Bahia passou no processo seletivo para integrar o grande elenco da peça “Guerra de Canudos”, montada para lembrar os cem anos do conflito armado. Tempo mais tarde, em Salvador, por meio de parceria com o dramaturgo Ed Anderson Mascarenhas, montou o projeto Maturarte composto por oficinas de teatro para a maturidade. No ano de 1996 retornou para Ipatinga. Fez Artes Cênicas, na modalidade à distância, pela Universidade de Brasília (UnB). Fundou e coordena há 27 anos o Grupo Perna de Palco, especializado em cursos de teatro para crianças (Girança), adolescentes e adultos (Improviso) e para a terceira idade (Velha Guarda).

Do teatro para o cinema

Luzia é atriz, produtora, dramaturga e dançarina. Escreve dramaturgias, poesia, contos e, agora, montou e gravou seu primeiro filme a partir de um processo de qualificação audiovisual fundamentado na criação coletiva e na troca de experiências com profissionais do cinema e da TV desenvolvido pelo Curta Vitória a Minas III.

“No teatro, quando se vai criar um personagem, você o tira do papel, da horizontalidade, e o coloca na vertical. Isso se chama carnificar o verbo. Dá carne, corpo para o verbo. Durante as oficinas audiovisuais do projeto aconteceu exatamente a mesma coisa. Esta história foi ganhando corpo, passo a passo, saindo do campo do imaginário, da escrita para a materialização”, destaca a diretora.

Para Luzia, o processo de construção dos filmes nas oficinas foi muito integrativo e inteligente porque os autores e as autores das histórias se desenvolveram juntos, um aprendeu com o olhar do outro, a partir do que o outro propunha para cada história, com a orientação e o compartilhamento de conhecimentos dos profissionais. Este processo colaborativo de aprendizado e transformação do olhar se aprofundou no set de filmagem pela vivência conjunta da equipe local e da equipe de profissionais de fotografia, som e produção disponibilizados pelo projeto.

“O momento de gravação do filme é tão explosivo porque é muito intenso, acontece numa dinâmica muito rápida, pois temos que nos ocupar com diferentes elementos, como a luz, a disponibilidade dos atores, e ainda com tudo que envolve a apuração do olhar. À medida que você começa a gravar as cenas, o seu olhar vai ficando mais apurado, mais atento, mais concentrado, mais focado no processo das filmagens. Gravar é muito intenso. São muitas pessoas envolvidas, muitos corações que batem num mesmo ritmo, num mesmo tempo. Foi uma experiência ímpar, incrível!”, destaca a diretora.

Formada em Design e Artes Integradas, Ariel Bertola, 26 anos, acompanha o processo criativo da mãe desde pequena. Estava dentro do ventre em sua primeira vez no palco. Dali por diante, manteve-se sempre por perto, algumas vezes na coxia, outras na cabine de iluminação ou mesmo no palco como atriz dos espetáculos montados pelo Grupo Perna de Palco. Nesta transposição da linguagem do teatro para a do cinema, a artista visual mergulhou junto com mãe no universo cinematográfico e colaborou, principalmente, com a construção do conceito da direção de arte e com a assistência de direção.   

Segundo Ariel, cada processo, cada decisão, cada escolha nesta jornada de preparação do curta-metragem contaram com muito comprometimento e engajamento da mãe em todos os detalhes. “Deram muito certos os processos, as imagens ficaram muito bonitas. Foi importante pra ela encontrar este novo caminho, uma nova forma de contar histórias diferente de como ela já contava. Ela é uma contadora de histórias nata, é uma pessoa muito criativa, muito dedicada. As ideias são muito efervescentes. E vê-la concretizando este filme com uma ideia que nasceu como uma sementinha, foi gerando e se ramificando para vários novos aprendizados, várias novas formas de se trabalhar, foi muito legal. Tenho certeza que ela vai querer produzir outras obras audiovisuais porque deu pra ver o brilho no olho dela participando de tudo isso”, relata a artista visual.

Costuras de gente

Uma das conquistas do projeto é o compartilhamento de aprendizados. O estudante de geografia, dançarino e artesão Antônio Junio Pereira, 25 anos, assumiu a função de assistente de direção. Ele acompanhou a trajetória da namorada desde a escrita e a seleção da história, o curso, a pré-produção até as filmagens. O convite para acompanhar o trabalho da direção lhe deixou feliz e, ao mesmo tempo, apreensivo por causa da falta de experiência. “A vivência nas filmagens foi incrível. É algo muito mágico acompanhar os processos de criação e depois ver o resultado. Todo processo de gravação é desafiador. É uma história linda, que me despertou por toda a magia de criar algo tão incrível”, destaca Antônio.

A estudante do 5º do ensino fundamental Catarina Mendes Torrezani, 10 anos, estuda teatro desde os três anos de idade. Na segunda edição do Curta Vitória a Minas, ela atuou no filme “Santa Cruz”, da artista visual Rita Bordone, de Ipatinga. A terceira edição lhe presenteou com a sua primeira protagonista no cinema. Para se preparar, além de estudar as falas, ela testou as expressões faciais. “A minha personagem sonha com um pássaro que anuncia a morte das pessoas. É bem bacana ficar observando as outras pessoas fazerem as cenas, mas também é muito difícil quando você tem que brincar num chão que está cheio de formigas secas, mortas (brinca). É uma ótima história e ela me desperta um tom de coisa engraçada e, ao mesmo tempo, meio doido”, avalia a atriz.

A menina contracenou com a mãe, a servidora pública Ivana de Resende Mendes, 47 anos, que também faz teatro há alguns anos. A atuação no cinema levou a funcionária pública para vivências fora do palco. “A atuação no teatro é bem diferente desta do cinema. Bateu uma certa insegurança, mas eu adorei cada momento no set de filmagem. E o que mais achei desafiador é que tudo é muito preciso, muito detalhado, a luz, o enquadramento. E todo mundo tem que estar bem atento o tempo todo”, conta Ivana.

A atriz María Helena da Silva Santos, 67 anos, integra o Grupo Perna de Palco há 25 anos. Ela foi convidada pela diretora para interpretar uma carpideira, mulher a quem se pagava para chorar nos funerais. Esta é sua terceira atuação dentro do cinema e já havia interpretado uma carpideira na montagem teatral para o clássico da literatura brasileira “Morte e Vida Severina”, do escritor João Cabral de Melo Neto. Helena amou a oportunidade de fazer a carpideira em um contexto tão diferente e de experimentar uma nova linguagem artística.

“Gosto muito de personagens que retratam nosso repertório popular. E gosto muito de cantar. Há muita diferença entre estar atuando no palco e no set. Quando estamos ensaiando no palco podemos voltar a cena quantas vezes for necessário para consertar ou melhorar alguma fala ou ação, mas, no espetáculo, não tem como voltar. No set vamos repetindo a gravação até ficar do jeito que os diretores querem. O tempo é muito diferente. Mas o interessante é que, quando ouvimos a palavra ação, a mesma magia acontece porque assumir a personagem fica igual”, descreve a atriz.

Uma outra personagem marcante da história é vivida pela mãe da diretora, Celeste de Resende, 85 anos. Ela se lembra de ter feito o papel da caridade numa peça da igreja sobre fé, esperança e caridade. Inicialmente, a mãe havia pensado em não aceitar a função porque não se considera uma atriz, porém, voltou atrás na decisão.

“De início eu fiquei encabulada, com medo de não saber fazer, mas depois eu gostei muito, gostei do trabalho e da equipe. Foi tudo muito bom, fiquei muito feliz”, conta a matriarca. Estar ao lado das filhas e das netas a ajudou a se tranquilizar e a perder a inibição. “O mais difícil de fazer foi o cortejo porque eu estava descalça e eu não tenho costume de andar descalça. Eu gostei do pessoal que era sempre bacana, ajudava muito e eu me desinibi. Não imaginava que era assim que se fazia um filme, aprendi agora. O mais emocionante foi a cena com a minha neta penteando o meu cabelo”, conta Celeste.

“O Pássaro” traz também no elenco Marilson Braga, Rita Knop, Wal Vitorino, Patrícia Louback, Diego Martins, Antônio Junio, Isabelle Rosa, Clara Magalhães, Aneli Coelho, Laura Teodoro, Luana Maestri, Luiza Mendes e Frida Marmota (a cadelinha caramelo).

Texto: Simony Leitei Siqueira

Fotos: Equipe IMA

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