Boi Balaio fortalece laços de pertencimento em Bom Jesus do Bagre, Belo Oriente (MG)

Todos os anos, após a quaresma, cristãos em todo mundo celebram os mistérios da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo durante a Semana Santa. No Distrito de Bom Jesus do Bagre, no município de Belo Oriente (MG), há 75 anos, a pequena comunidade fortalece a antiga devoção cristã junto com uma tradição popular aprendida de geração em geração. A Festa do Boi Balaio, que acontece anualmente no Sábado de Aleluia, inspirou o documentário “Boi Balaio”, do diretor Mauro dos Santos Júnior, selecionado pelo Curta Vitória a Minas III. As gravações das cenas de reconstituição dos principais momentos do evento aconteceram de 11 a 15/7.

A tradição no distrito começa na Sexta-feira Santa com uma brincadeira envolvendo o Judas, apóstolo que traiu Cristo ao entregá-lo aos soldados romanos. Os moradores invadem algumas casas para pegar escondido objetos como vasos, cadeiras, bicicletas e até animais como galinhas, cavalos e vacas e guardam-nos num espaço da praça para serem devolvidos apenas no dia seguinte. Os roubos são atribuídos a Judas cujo boneco é capturado, colocado em cima de um cavalo e levado pelas ruas até um ponto de concentração onde é queimado pela população.

O estudante do 2º ano do Ensino Médio, João Marcos Nunes da Silva, 16 anos, integrou o grupo de amigos convidados para encenar o ritual do roubo. Desta vez, a turma escolheu esconder um cavalo, uma bicicleta, duas cadeiras e um carro. “Gravar a cena foi a coisa mais da hora! Eu não pensei que fosse tão bonito do jeito que foi. Foi muito legal gravar como se fosse ator mesmo. Até que não teve dificuldade nenhuma pra gravar. A gente só combinou o que ia fazer e tirou tudo de primeira. Acaba que, quando junta uma equipe pra poder fazer alguma coisa, sai bem feito, né?!”, relata João.

A queima do Judas celebrada pelos jovens ganhou há 30 anos uma versão infantil, o Judas Mirim. O ritual é semelhante ao anterior sem a brincadeira do roubo. O boneco feito de pau usa um macacão preenchido com palha seca de banana e bombinhas e tem a cabeça de coité, planta comum da região, adornada com um chapéu. “O cortejo começa por volta das 9h da noite. As crianças cantam, brincam, se divertem, fazem bagunça com lata e vibram ainda mais na hora da queima do boneco por causa da zoeira das bombinhas. É muito emocionante!”, relata Maria Socorro Carvalho de Jesus, 60 anos, auxiliar de serviços gerais, uma das idealizadoras do Judas Mirim.

Os festeiros caminham pelas ruas e entoam cantigas com rimas utilizando de forma divertida e respeitosa os nomes dos próprios moradores das casas. Uma delas é assim: O Judas vai, o Judas vem, cavalo bom o Judas tem. Esse Judas é muito macho, ele é irmão do Paco Macho. O Judas vai telefonar é pro Dindo Valdemar. Esse Judas comeu melado lá na casa do Geraldo. O Judas vai, o Judas vem, cavalo bom, o Judas tem. “Como aqui a gente conhece todo mundo, não tem perigo de alguém estranhar”, brinca Maria Socorro sobre as rimas feitas de improviso pelos brincalhões da cidade cujo padroeiro é o Senhor Bom Jesus.

Êh, Boi!!

A malhação do Judas antecede o evento mais esperado da festividade marcado para o sábado, o Boi Balaio. O boi é uma armação composta por uma cabeça empalhada de boi e o corpo feito de balaio revestido com espuma e um pano estampado com cores vivas. Um mascarado veste esta armação e desfila pelas ruas correndo atrás dos brincalhões mais corajosos que se atrevem a implicar com o bicho. As “Mulherzinhas”, homens mascarados, vestidos com roupas femininas, correm atrás de quem bate no boi e revidam as provocações com lambadas de galhos.

Quem não se mete na confusão acompanha a algazarra nos arredores do cortejo, das varandas, das janelas ou dos quintais das casas. Ao som de sanfonas, pandeiros, timbas e triângulos, o povo entoa canções aprendidas através da tradição oral: “Mas quem quer ver meu boi andar, puxa o laço devagar. Vem cá, meu boi, êh, boi, este boi é meu, êh boi, ele não é seu, êh boi. Ele todo meu. Esse boi comeu capim lá na casa do Zirinho. Vem cá meu boi, êh boi, este boi é meu, êh boi, mas quem quer ver meu boi andar, puxa o laço devagar”. Como o caminho é longo e a armação do boi pesada, os festeiros trocam de personagens: quem é boi vira “Mulherzinha” e vice-versa, assim por diante. Ao passarem em frente à casa das matriarcas, Dona Conceição e Dona China, filhas dos precursores da festividade, o boi presta uma reverência.

Desde os quatro anos de idade, Heitor Barbosa, 15 anos, estudante do 1º ano do Ensino Médio, participa da festa. Muitas pessoas, segundo ele, gostam de encostar mais suavemente a mão no boi porque acreditam nele como um símbolo de fartura e prosperidade. Isso porque contam que, neste dia, nos tempos antigos, parte das colheitas abundantes era doada para os moradores. Nesta dança pra lá e para cá, as “Mulherzinhas” também desempenham o papel de proteger crianças e idosos da multidão mais agitada. Não foi diferente durante a encenação da festa para as gravações.

“O filme é uma oportunidade muito bacana de dar mais visibilidade para nossa cultura e atrair mais pessoas para a festa. O que eu achei mais legal foi gravar com meus amigos. E a equipe nos fazia se sentir bem, produzir de forma descontraída, nos deixavam atuar de forma natural. Esta tradição é a nossa história, é o que carrega Bom Jesus do Bagre. Da mesma forma que meu avô passou pra o meu tio, vem de geração em geração, espero que meus netos, meus bisnetos, meus filhos participem, seja na organização ou acompanhando a festa, mas que não deixemos esta cultura tão bonita morrer”, ressalta Heitor.

O trabalhador florestal Alessandro Pereira Santos, 41 anos, passou a integrar a comissão da festa no ano de 1997. Além de atuar na organização, ele é um dos percussionistas do conjunto musical responsável por animar os moradores. “Comecei a participar quando ainda estudava e, desde lá, não parei mais. Da escola eu vim pra rua, estou até os dias de hoje e quero por muitos anos participar desta cultura maravilhosa. É uma festa grandiosa e importante porque consegue unir a criança, o adolescente e o idoso. Pessoas que estão fora do nosso distrito, nesta data, se reúnem com a comunidade e formam uma só família, a família Boi Balaio, que vem crescendo cada vez mais”, conta Alessandro. E dias antes da festa tradicional, a Escola Municipal Bom Jesus do Bagre reúne os alunos no pátio para festejarem o Boi Mirim, um esquenta para o Boi Balaio.

O caminho para o filme

A oportunidade de transformar a tradição em filme trouxe uma dupla alegria para o diretor mineiro. Uma delas foi a troca de experiências com os profissionais do cinema tanto durante o curso de preparação quanto nas gravações do Curta Vitória a Minas III. O projeto lhe ajudou a aprimorar os conhecimentos na área audiovisual onde atua como profissional desde a chegada em Belo Oriente, em 2019. Mauro havia trabalhado grande parte da vida como montador de móveis. Estava desempregado quando recebeu o convite do tio Pedro Oliveira para integrar a equipe de uma produtora.

O primeiro trabalho consistia em carregar e montar equipamentos. Ele começou a se interessar pela área, se aproximou dos técnicos para aprender como faziam, assistiu a vídeos educativos e foi descobrindo os fundamentos da realização audiovisual. Primeiro, ele conta, observou como as imagens eram captadas, depois como eram organizadas no processo de montagem. Assim, aprendeu a filmar, a editar, a escrever roteiro e, na pandemia, a transmitir lives. A seleção no Curta Vitória a Minas III representou um novo impacto na sua vida profissional porque lhe ampliou os horizontes de criação e produção dentro do cinema.

“Eu aprendi a reestruturar melhor um roteiro, a organizar uma linha de pensamento que seja legível, a criar um roteiro mais detalhado sobre o que será feito. Quando comecei a fazer o curso do projeto, eu sabia que iria aprender mais, mas não esperava aprender tão mais. Me destruiu pra me reconstruir. Hoje estou vendo o trabalho audiovisual por um outro olhar”, destaca o diretor.

Para ele, também é uma grande alegria juntar a comunidade para criar uma obra documental de valorização e fortalecimento da cultura e da história local. Ele conta que os dias de gravação revigoram a comunidade e trouxeram reconhecimento para o território. “A filmagem foi bem corrida e divertida. A comunidade abraçou a causa e talvez nem estivesse esperando que algo como esse acontecesse. Quando a proposta foi apresentada, todos participaram de forma direta ou indireta. Os organizadores do evento estavam eufóricos e houve um grande envolvimento dos jovens e da comunidade escolar. Foi muito gratificante ver o pessoal se entregando com muita energia para esta tarefa. Eu me senti feliz, correu tudo bem e de forma grandiosa”, destaca Mauro.

A matriarca

Maria da Conceição Vieira viu o boi passar pelo Bagre pela primeira vez ainda adolescente. De lá pra cá, nunca deixou de participar. Ela pulava, saltava e corria com medo dele. Hoje, aos 92 anos, seu coração guarda a mesma emoção dos primeiros anos da tradição. Segundo a moradora, o evento sempre foi motivo para juntar os familiares e os vizinhos em um ambiente de confraternização. Como são muitos anos, não faltam histórias engraçadas envolvendo o ilustre personagem do distrito.  

“Esse boi nunca falhou, todos os anos. É um momento de unir os parentes. Uma cunhada chamada Glorinha, lá de Belo Horizonte, vinha pra cá com os cinco filhos e os coleguinhas deles justamente pra assistir o boi. Certa vez, ela muito entusiasmada veio correndo e provocou o boi na brincadeira. Nela provocar, quem estava controlando o boi, muito entusiasmado, achou legal e correu atrás dela. Ela correu para o lado da minha casa, mas não deu tempo de subir a escadinha. O boi veio e atacou. Ela gritava: pelo amor de Deus, me deixa que eu estou mijando de rir. Ele não parava. Só que quem estava no boi era o sobrinho dela, meu filho Ronaldo. Ele aproveitou pra brincar porque gostava muito dela”, lembra Dona Conceição.

As filmagens sobre a antiga cultura do lugar a deixaram muito contente. “Eu estou muito entusiasmada com este trabalho. Pra mim, é uma esperança de que o Bagre vai evoluir na parte destes movimentos. Parece que acordou quem estava dormindo, deu um alerta. Tanto o boi, quanto o Judas, são culturas do lugar. Tenho certeza que vai continuar, tanto o Judas roubando, fazendo e acontecendo, arrebentando foguete, quanto o boi com este entusiasmo todo. Eu espero que assim seja. Nós nos sentimos mais grandiosos com isso, nos alertou e valorizou aquilo que, às vezes, podia perder o valor”, celebra a matriarca.

Texto: Simony Leite Siqueira

Fotos: Equipe IMA

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